A figura no caixão
De todos os funerais que já fui
este foi o mais deprimente. A sala fria de paredes brancas, as gotas de chuva
batendo na janela e as pessoas todas em volta do caixão, cabisbaixas... Fazem-me
pensar se fiz o correto. Todos me olham pelo canto dos olhos, todos me
culpam. Não me importo. No fundo só
quero olhar para dentro de mim. Mas a figura no caixão parece tão mais feliz...
As olheiras e o vestido vermelho não tiram a beleza da jovem garota. O que cada
um queria ali era que a bela menina se levantasse como num passe de mágica, que
aparecessem milhares de pessoas para ver a bela que ressuscitou, cantando e
esbanjando novamente sua beleza, fitando a todos com seus enormes olhos azuis e
que os lábios antes brancos e sem vida no caixão, voltassem a ter cor. Mas isto
não iria acontecer. E só eu sabia que inúmeros foram os pecados dela... Não,
ela não era uma boa menina. Quando o sol se punha, ela se transformava na
garota do beco. Com seu corpo de mulher, mas com pouca idade. Qualquer coisa
virava diversão para ela após a meia-noite. Para ela e para mim. Queria ser ao
menos uma noite, a vadia, a boa moça e a gótica. Extintos estranhos vinham dela
ao entrar no beco, desejos obscuros... O prazer de beijar sua boca e sentir
gosto de sangue fresco e quente ocorreu mais de uma vez, e aproveitei. Ela sim
sabia se divertir sozinha, passeando nas alamedas escuras de camisola e
maquiagem preta, portando um soco inglês escondido nas partes íntimas (caso
tivesse problemas). Tinha traços masoquistas na personalidade, mas nada que
chegasse a me assustar.
Mas nada mais importava, ela não
voltará. Não importa que o sol saia na hora do enterro, que esta chuva
torrencial pare. Perdi seu amor, seus olhos... Meu prazer. E chegara a hora de
fechar a tampa do caixão. A última visão de seu rosto antes que aquela tampa de
madeira fosse abaixada ficaria em minha mente para sempre. Uma fresta de alguns
centímetros, um sorriso de lado e a tampa se fechou para sempre num barulho
estrondoso. Poderia ter contado a todos
o que vi e fazer um escândalo, me jogar na cova junto com você. Mas para quê?
Preferi o silêncio e o enterro, pois assim enterraria também todos os meus
pecados. E anos depois, quando reabrissem seu caixão e vissem as marcas de suas
unhas cravadas na tampa, não me culpariam. E nem teriam como provar que eu fui
a única que te vi esboçar um sorriso antes que a tampa fosse fechada. Só espero
que não tenha tido forças o suficiente para deixar algum recado escrito à unha
e sangue, me entregando.
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